segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Carta Aberta ao Desembargador Ronei Oliveira

Belo Horizonte, 17 de setembro de 2011.

“Na aplicação da Lei, o Juiz atenderá aos fins

Sociais a que ela se dirige e às exigências

do bem comum.”(Art. 5º da Lei de Introdução

às Normas do Direito Brasileiro)

A gente não quer só comida

A gente quer comida

Diversão e arte

A gente não quer só comida

A gente quer saída

Para qualquer parte...

A gente não quer só comida

A gente quer bebida

Diversão, balé

A gente não quer só comida

A gente quer a vida

Como a vida quer...

...

A gente não quer

Só dinheiro

A gente quer dinheiro

E felicidade

A gente não quer

Só dinheiro

A gente quer inteiro

E não pela metade...

(Comida – Titãs)

Caríssimo Senhor Desembargador:

Foi com imensa tristeza que soube de Vossa decisão de determinar o

imediato retorno dos professores mineiros ao trabalho, ou seja, às

salas de aula. Não posso negar, também que fiquei surpreso ao ler o

teor do texto que fundamenta/justifica a decisão de Vossa Senhoria.

Como cidadão, professor, e, como o Senhor, funcionário público

remunerado pela população – inclusive a dos “grotões mineiros” em

que, segundo vosso texto, fruto de vosso insuspeito conhecimento de

causa, as crianças vão à escola “mais atraídos pelo pão do que pelo

ensino” –, também considero importante que “na aplicação da Lei, o

Juiz atenderá aos fins Sociais a que ela se dirige e às exigências do

bem comum.” Mas, pergunto, Senhor Desembargador, estaria mesmo

a vossa decisão colaborando para o bem comum?

No plano nacional, a nossa primeira Constituição, de 1824, já

determinava que a educação elementar seria pública e gratuita. Em

nosso passado recente, a Magna Constituição de 1988 garante esse

mesmo direito e expande ao determinar a natureza pública e

subjetiva do mesmo. O mesmo faz, como não poderia deixar de fazê-

lo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1991) e a Lei de Diretrizes

e Bases da Educação Nacional (1996).

Veja, Senhor Desembargador, em Minas Gerais a primeira legislação

para a instrução pública, a Lei no. 13, é do ano de 1835. Ou seja, foi

uma das primeiras leis que nossos legisladores acharam por bem

aprovar porque reconheciam, mesmo dentro de limites às vezes

estritos, a importância da educação pública. De lá para cá, se

contarmos, veremos centenas de atos legislativos que, como aquela

Lei fundadora, vieram garantir o legítimo direitos dos cidadãos a uma

educação pública, gratuita e de qualidade.

No entanto, poderíamos perguntar: estariam esses direitos sendo

garantidos de fato? Sabemos que não, e não apenas para os dos

“grotões mineiros”. E isto não apenas hoje.

Ensina-nos a história da educação mineira que desde o século XIX

tem-se muito claro que os professores constituem elemento

fundamental para a qualidade da escola. No entanto, desde lá também

se sabe o quão difícil é garantir a entrada e permanência dos

professores na profissão. Veja, Senhor Desembargador, o que dizia

um Presidente da Província de Minas em 1871, isto é, há 140 anos: “À

par da crêação das escolas normaes devem se augumentar os

vencimentos dos professores. Não se pode esperar que procurem

seguir carreira tão pouco retribuída aquelles, que, depois de instruídos

nas escolas normaes, sejão convidados para outros empregos com

esperança de um futuro lisongeiro”. [Antonio Luiz Affonso de Carvalho,

Presidente da Província de Minas Gerais, em 02/03/1871]

Passados todos estes anos, e não são poucos, o que demonstram,

hoje, a experiência dos professores mineiros e as mais diversas

pesquisas acadêmicas é que em breve faltarão professores para a

escola básica brasileira. Aliás, para algumas disciplinas essa falta já é

sentida hoje. Mas não apenas isto. O mais grave é que,

independentemente do número, verifica-se que a profissão perdeu, de

vez, o poder de atrair/seduzir jovens talentos. Ou seja, a tarefa

socialmente relevante e culturalmente fundamental de conduzir as

novas gerações ao mundo adulto já não atrai parcela significativa (e

necessária) de sujeitos dessa mesma sociedade. É como se os jovens

estivessem dizendo: não vale a pena jogar o melhor das minhas

energias nessa tarefa, apesar de sua relevância social e cultural.

Veja, pois, Senhor Desembargador, que o poder público mineiro vem

lesando, há séculos, nossas crianças em seu mais que legítimo direito

à educação. E, convenhamos, a considerar o atual salário dos

professores mineiros, mesmo se comparado ao Vosso tempo de

“vacas magras”, a atual administração estadual nada fez para atacar o

problema. Muito pelo contrário, o agravou com a famigerada política

de subsídio. Considere, pois, Senhor Desembargador, que as

“queridas vacas”, como dizia a adorável professora do Drummond,

estão tão magras que em breve delas não teremos nem o leite, nem

a carne, nem o osso e nem mesmo o berro!

É louvável, Senhor Desembargador, a Vossa preocupação com a

fome das crianças dos “grotões mineiros”, assim como com a garantia

do direito à educação para a toda a população mineira e com os

danos causados pela greve ao alunado. Por outro lado, não posso

concordar que essa greve seja abusiva ou que precisaria se arrastar

ad aeternum. Parece-me, aqui, que uma das formas de a Justiça

contribuir para garantir, na aplicação da Lei, os “fins Sociais a que ela

se dirige e às exigências do bem comum”, seria obrigar Estado

mineiro a cumprir, sem subterfúgio, a legislação existente e instruí-lo a

reformar a péssima Carreira Docente em vigor. Esta contribui mais

para a desmotivação do professorado do que lhe acena com os justos

ganhos decorrentes da busca por mais e melhor formação e da

comprovada experiência adquirida no exercício da profissão.

Sabemos, Senhor Desembargador, que a justa decisão daquele que,

mantido pelo poder público, tem o dever e a legitimidade para decidir,

é, também, aquela que interpretando a Lei, de mãos dadas com a

experiência passada, descortina, no presente, o futuro que pretende

criar. A Justiça, Senhor Desembargador, se faz quando se tem em

mente os problemas (futuros) que nossas soluções criarão ou

deixarão de criar. A Justiça se faz, também, quando combate

injustiças duradouras e possibilita a criação de condições de uma

duradoura justiça!

Se o direito à educação de qualidade não se faz apenas garantindo o

acesso, este direito está, hoje como ontem, ameaçado, e sua garantia

não se faz na sala de aula e no pátio da escola, mas nas ruas e na

praças ocupadas pelos professores em greve. Neste momento, a

continuidade da greve como forma de obrigar a administração

estadual a responder, de fato, à situação humilhante dos professores

estaduais com melhores salários e condições de trabalho, é a única

forma de garantir o direito à educação, em cuja defesa todos nos

irmanamos.

As crianças que freqüentam a escola pública e as famílias que pagam

impostos para que o Estado a garanta, Senhor Desembargador, “não

querem só comida”. Querem tudo a que têm direito! Têm direito,

inclusive, a professores sejam felizes e satisfeitos com seus salários e

suas condições de trabalho! Professor que foi, aluno que aprendeu

com alguma professora nos bancos de uma escola, o Senhor

Desembargador deve saber também que a única forma de fazer uma

boa escola ou uma boa escola é que os professores tenham, eles

também, os seus direitos reconhecidos e protegidos. Eles não querem

“só comida”!

Finalmente, Senhor Desembargador, é preciso lembrar que,

contrariamente o ditado popular, nem sempre onde há fumaça há

fogo. E, às vezes, pode haver fogo se haver fumaça. Para isto,

bastaria ver a Praça da Liberdade na sexta feira. O “gás de pimenta”

pode “ser fogo”, como disse, em mensagem eletrônica uma professora

que lá estava: “Para quem nunca inalou gás de pimenta, a sensação

é a seguinte: um fogo na cara, um ódio no coração e muita tosse”.

Mesmo sem a cobertura da fumaça, foi lá que o Estado de Minas,

por meio de seus agentes legalmente constituídos, nos deu uma

péssima lição de cidadania. Penso, Senhor Desembargador, que o

episódio da Praça da Liberdade, este sim, merecia uma rápida

investigação e a punição exemplar daqueles que, atualizando o que

há de pior em nossa história, violentaram não apenas os professores,

mas todos nós, cidadãos deste país. Logo, imagino, também ao

Senhor.

Acalentando o sonho de que nossas crianças e jovens possam ter

garantido o direito a uma escola de qualidade e que os professores

mineiros tenham garantido o seu legítimo direito a lutar pelos seus

direitos, envio cordiais saudações.

Luciano Mendes de Faria Filho

Professor de História da UFMG

Coordenador do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil –

1822/2022

5 comentários:

  1. Maior valorização dos professores, em todos os sentidos.

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  2. Toda solidariedade ao professorado mineiro! Continuem na luta contra esse governo autoritário e essa justiça que não é cega, apenas enxerga o que lhe convém!

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  3. Nossa!!!! Sem mais palavras.
    Disse tudo num folego só!!!!
    Sou tambem educadora e me senti representada. Parabens pela explanação

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  4. Nossa!!!! Sem mais palavras.
    Disse tudo num folego só!!!!
    Sou tambem educadora e me senti representada. Parabens pela explanação

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